Papiro

Este que enxergas sentado
é um pai
mas já não se pode contar seus filhos.

Camadas

Comemorando o aniversário de Maressa de repente o ontem se tornou o tão distante 11 de setembro. Cozinhando o almoço sem querer percebi as centenas de anos que me apartam daquele 14 de julho. Não foi mês passado enquanto eu estava na frente da TV que já se completavam os 50 anos da marcha de Selma? Presença perpetuada pelos séculos de dias.
Mas como assim já faz mais de 24 horas que eu vi aquela mensagem pelo celular no dia 23 de julho?
Em meio ao tempo no qual fui colocar água para beber já disse adeus àquela tia há mais de 3 anos, sendo que há 120 meses ela ainda me acordava na cama da casa de vovó com aqueles olhos verdes. Enquanto desligo as luzes da sala já conto nove meses desde que desligava aquelas mesmas luzes para sonhar olhando o poste e sua lâmpada laranja esmiuçada pela minha janela. Daqui há quatro meses comemorarei dois anos desde o primeiro recital. Maria Rita já tem 8 anos. Por que parece que ao longe Enya toca singelamente uma gaita enquanto olha a noite mesmo que ela tenha desistido de tocar antes mesmo de nos conhecermos? Sinto em meu coração a mesma alegria satisfeita como se Marcílio tocasse La Catedral no canto do sofá e isso já conta com mais 365 dias.
Memoriosa...
A parte mais importante: uma estrela avisou os três homens. Não era inverno. Eu não estava lá.
Não controlamos o tempo.

Das datas ditas especiais

Das coisa boas que aprendi com amigos:

“Amizade
    Quando o silêncio a dois não se torna incômodo.” 
“Amor
    Quando o silêncio a dois se torna cômodo.”  
(QUINTANA. Caderno H.)

Confissão da falta

Saudade é uma casa abandonada com goteira constante caindo num balde sem fundo - nada a a(m)para.
Em sua luz
Eu aprendi a amar
Em sua beleza
Eu aprendi a fazer poemas
Você dança dentro do meu peito
Onde ninguém o vê
Mas às vezes eu o vejo
E esta visão
É toda a minha arte.
Hafiz 

toda estação

Já tive muitas noites na corrida da vida até aqui, mas em nenhuma delas me foi tão claro o que é ter esperança como tem sido no hoje. O autor sabia que tanto tempo depois os homens ainda seriam do mesmo tecido de que são feitos os sonhos?

Para os noivos

O amor não é cego
Porque não enxerga no outro
Falta do belo
Imperfeição
O amor é cego
Porque quando Liégina olhou os olhos de Marcílio
Todas as a janelas de sua casa se fecharam aos outros vizinhos
E somente para ele se abriram
Em perene verão.

Para não se perder

Hoje, quando acordei, a única pergunta que me fazia era: onde estavam seus olhos?
Os únicos que desejo pela manhã,
quando acordarmos.
Essas cachoeiras
os ribeiros de alma
que correm pelas árvores
e toda essa seiva.
Ah, esses olhos seus
mas seus olhos - quais são?

Uma casa limpa

Vovó sempre foi de longe a pessoa mais organizada e com senso de limpeza que conheço. Nessa parte, eu herdei isso dela. Quando abro seu guarda-roupa e vejo a organização dos batons e dos perfumes eu penso ali ser o meu guarda-roupa; ao abrir o armário e ver os copos penso que eu poderia tê-los organizado assim. Nunca vi roupas mais alvas do que as que vovó lava. Hoje, mesmo com a idade já bem avançada - praticamente cumprindo 75% do século de vida, vovó ainda faz essas coisas. 
Não estive lá quando vovó e vovô se separaram, mas eu sempre soube que vovó ama vovô. A aliança na mão esquerda que ela nunca tirou e que agora já não sai mais é o sinal mais nítido de que Rita sempre amou Manoel. Às vezes eu penso que talvez vovó tenha se dedicado mais ainda à limpeza da casa depois que vovô se foi. Aquela antiga e grande casa era sempre impecavelmente limpa, e todos os dias quando eu acordava às 9h o fogão à lenha já estava aceso, mesmo depois do fogão elétrico ter chegado. 
Ainda antes de vovô e vovó se separarem os filhos já estavam saindo de casa, mas lhe ficaram alguns netos a quem ela dedicou profunda atenção. Aprendi como vovó que muitas são as maneiras estranhas de se desapegar de uma dor, vejo isso quando olho nos olhos dos meus familiares, quando mamãe com orgulho fala da infância, do passado, dos bisavôs.
O que nunca me saiu da mente foi a brancura dos lençóis estendidos no varal, balançando com o vento; aquela árvore que tinhas espinhos e eu gostava; sair no portão da casa e ver a vovó varrendo a rua, já lá no fim; aquele poço em que meu irmão e eu tiramos fotos quando pequenos; o amor de meu irmão quando éramos crianças; a super antena que ficava atrás da casa da vovó; as apavorantes montanhas, as quais eu julgava abrigar seres alados; os livros que eu ganhei da vizinha da frente naquelas férias; os banhos de bacia que eu sempre inventava quando acordava cedo, a casa limpa...
Hoje quando repenso aquela casa (e os salgadinhos gostosos da venda ao lado), me pergunto se eu queria perpetuar também aquela cultura de limpeza da vovó ou não. Será mesmo que eu vou procurar algum lugar no mundo além de corações para fazer morada e cuidar sempre? Todos nós da família aprendemos com vovó a ter uma vida organizada, cuidar primeiro (e no caso de vovó: sempre) dos afazeres, e a deixar a casa limpa.
Mas, e a vida desperdiçada?
Ainda bem que eu sequei a louça para vir escrever.
Vovó é a moça mais bonita que eu já vi de batom na vida. Tenho certeza que a vida não foi desperdiçada quando vi seu sorriso enrugado outro dia.

Em algum lugar sagrado

Um grande amor assim
Em algum lugar sagrado,
Bem maior que aquele amor-sem-fim
Onde te encontro
Perdido na canção
Tocando sempre sempre de saudade
Serenatas de um mesmo violão
Buscando o teu olhar.

Além dos quatro mil cantos desse mundo
Existe um lugar:
Nascente água,
Sertão de fogo,
Anjo da terra,
Paixão no ar,

Estrela minha,
Luz que me guia:
Onde te ver,
Como te ouvir?

Sei que vou te encontrar
bem perto de um lugar sagrado,
Muito além da imaginação
Meu sonho antigo
Guardado em oração
Amor plangente de saudade
Pelas cordas do meu violão
Sei que vou te encontrar.

Além dos quatro mil cantos desse mundo
Existe um lugar:
Nascente água,
Sertão de fogo,
Anjo da terra,
Paixão no ar,

Estrela minha,
Luz que me guia:
Onde te ver,
Como te ouvir... amor?

a mulher da loja

Carol era a pessoa mais surpreendente da vida: ela ouvia meus conselhos. Isso abalou a minha vida...
minhas palavras.

Correio domiciliar

Propositalmente buscara as correspondências em espera da surpresa familiar atrasada por mim alguns meses. Rios de papéis caindo pelo caminho que formavam outro caminho para confirmar o desvio para o bem dos pés.
É noite
Imenso destino
Só contemplação.
Levantou-se do banco e deu de cara com mamãe.

Perda

Chegada a irmandade desabraçada das paixões - os panos já não caem da superfície, os cabelos já não dançam com as mãos, as íris não tingem o horizonte.

Brilho opaco
Perdidos, nunca achados.
Cacos - e nem sequer o chão.

Zero-hora

Se a gente desse certo - a gente já não daria agora: o amor são tempos verbais atrevidos.